Faz frio lá fora. O reino abandonado ganhou vida, me sufocando. Não quero pena, nem atenção, só relatar o que se passa dentro de mim, que talvez possa ser útil para outras pessoas. Na verdade, o frio lá fora não faz diferença, porque esse luto eu carrego dentro de mim, onde quer que eu vá. Sempre o carreguei, não sei por que. As circunstâncias só me fizeram ver essa vida que passa diante dos meus olhos, como o rosto da estrela que não posso tocar, porque minha mão surge de um abismo, tentando se agarrar desesperadamente a qualquer fiapo de esperança. Ela me negou o que eu neguei a mim mesmo, tanto tempo atrás, quando fiz a escolha inconsciente de observar a vida, quando deveria viver ela. E ninguém merece essa escuridão além de mim. Existem cúmplices, mas eles seriam os carcereiros, quando o prisioneiro sou eu. Quando não passava de uma criança aceitei os grilhões que botaram em mim, aqueles que agora enxergo pela primeira vez, ferindo meus pulsos. Eu olho para trás e só enxergo as trevas de uma vida não vivida. Agora eu consigo ver a verdade, toda a hipocrisia e as mentiras, e não me ausento da culpa, porque se existe uma vantagem em observar a vida, ela se dá na forma da sabedoria, que é a capacidade de ler nas entrelinhas. Mas não tive coragem de lutar contra o luto sem fim, queria alguém para fazer isso por mim, talvez um dos super-heróis que tanto admirava. Eventualmente essa guardiã surgiu, primeiro como salvadora, depois como redentora. Ela foi o princípio de tudo, por isso sempre vou amar ela, sendo eu um guardião ausente de agora em diante, protegendo ela da minha escuridão, como deveria ter feito desde o começo. É o preço que devo pagar em troca da liberdade. Porque esse luto é meu e de mais ninguém, portanto guardarei ele comigo, assim como meus pecados. A culpa também é uma prisão. Por um lado, estou me aprisionando mais uma vez, mas por outro nunca me senti tão livre. Eu consigo ver as barras da prisão, aquelas que sempre estiveram ali, e elas estão presentes onde quer que eu vá, porque sou um prisioneiro do luto. Mas todo dia eu luto contra isso; se não por mim, por eles. Éramos três, agora sobrou apenas um. Perdi um para a morte e outro para a vida. E aqui estou eu, entre o céu e o inferno, onde sempre estive. Estou em pé diante do abismo, contendo toda a escuridão que transborda dele, e não posso deixar de defender essa causa. Agora eu sei que devo enfrentar isso sozinho, sem abusar da boa vontade de mais ninguém. Essa luta é minha e de mais ninguém. Afinal, como já diziam os vikings, "o destino é inexorável".
Estrada do trovão
"Tenha um pouco de fé, há mágica na noite..."
sábado, 2 de julho de 2011
segunda-feira, 27 de junho de 2011
Como uma pedra
Em uma tarde emaranhada
Em um quarto cheio de vazio
De maneira livre eu confesso
Que estava perdido nas páginas
De um livro cheio de morte
Lendo como morreremos sozinhos
E se formos bons nos deitaremos para descansar
Em qualquer lugar que queiramos ir
Em sua casa anseio ficar
Quarto por quarto
Pacientemente
Vou esperar por você lá
Como uma pedra
Vou esperar por você lá
Sozinho
Em meu leito de morte eu vou rezar
Aos deuses do amor e aos anjos
Como um pagão
Para qualquer um
Que possa me levar ao Paraíso
Para um lugar do qual me lembro
Eu estive lá há tanto tempo
O céu estava ferido
O vinho gotejava
E lá você me conduziu
Em sua casa anseio ficar
Quarto por quarto
Pacientemente
Vou esperar por você lá
Como uma pedra
Vou esperar por você lá
Sozinho
Sozinho
E eu continuei lendo
Até que o dia tivesse terminado
E me sentei em remorso
Por todas as coisas que fiz
Por tudo que abençoei
E por tudo que errei
Nos sonhos
Até minha morte
Vou me questionar
Em sua casa anseio ficar
Quarto por quarto
Pacientemente
Vou esperar por você
Como uma pedra
Vou esperar por você lá
Sozinho
Sozinho
Audioslave
Em um quarto cheio de vazio
De maneira livre eu confesso
Que estava perdido nas páginas
De um livro cheio de morte
Lendo como morreremos sozinhos
E se formos bons nos deitaremos para descansar
Em qualquer lugar que queiramos ir
Em sua casa anseio ficar
Quarto por quarto
Pacientemente
Vou esperar por você lá
Como uma pedra
Vou esperar por você lá
Sozinho
Em meu leito de morte eu vou rezar
Aos deuses do amor e aos anjos
Como um pagão
Para qualquer um
Que possa me levar ao Paraíso
Para um lugar do qual me lembro
Eu estive lá há tanto tempo
O céu estava ferido
O vinho gotejava
E lá você me conduziu
Em sua casa anseio ficar
Quarto por quarto
Pacientemente
Vou esperar por você lá
Como uma pedra
Vou esperar por você lá
Sozinho
Sozinho
E eu continuei lendo
Até que o dia tivesse terminado
E me sentei em remorso
Por todas as coisas que fiz
Por tudo que abençoei
E por tudo que errei
Nos sonhos
Até minha morte
Vou me questionar
Em sua casa anseio ficar
Quarto por quarto
Pacientemente
Vou esperar por você
Como uma pedra
Vou esperar por você lá
Sozinho
Sozinho
Audioslave
sábado, 25 de junho de 2011
O mistério
"O mistério da história de quem será este? De quem puxa a cortina. Quem é que escolhe nossos passos na dança? Quem nos faz enlouquecer? E nos pune e nos dá a vitória quando sobrevivemos ao impossível? Quem é que faz todas essas coisas? Quem honra aqueles que amamos com a vida que levamos? Quem manda monstros para nos matar e, ao mesmo tempo, diz que nunca vamos morrer? Quem nos ensina o que é autêntico e a rir das mentiras? Quem decide por que vivemos e o que morreremos defendendo? Quem nos acorrenta? E quem guarda a chave que pode nos libertar? É você. Tem todas as armas de que precisa. Agora lute!"
Sucker Punch
Sucker Punch
quarta-feira, 15 de junho de 2011
A rosa
Nas margens da Estrada do Trovão, enquanto ele faz sua vigia silenciosa no Recanto das Rosas, vejo o homem da meia-noite lentamente tomar forma, alto e todo vestido de negro com seu chápeu em aba, mastigando um capim pelo canto da boca. Em suas mãos, ele segura uma foice pronta para colher o que foi plantado, e ao seu lado está o garotinho, agora sob sua proteção. Mas eu me viro para a outra direção e sigo caminhando sozinho, não para frente e nem para trás; para longe. Eu caminho por não sei quanto tempo, podem ser horas ou dias, não sei dizer. Até que chego numa praia e lá enxergo o céu mais límpido do que nunca. Límpido e ainda vazio. Eu olho para o mar e sua imensidão, tão grande quanto a minha tristeza, então as lágrimas escorrem e não consigo controlá-las mais. Eu penso na rosa e choro. Ela tão sozinha em seu altar, agora inalcançável e sagrada, como uma lembrança constante do que eu perdi. Eu aceito essa penitência com toda a satisfação, porque não me vejo como vitorioso, muito pelo contrário. O homem da meia-noite que cultive suas rosas, mas a penitência é minha e de mais ninguém, portanto faço o que quiser dela. De repente eu vejo que o exército de fantasmas me seguiu, todos eles súditos do reino perdido, aquele onde eu deveria reinar. Então me dou conta que virei um fantasma como eles, que talvez sempre tenha sido, fato que se torna concreto quando eu penso nele. Agora me tornei o rei deles, como sempre deveria ter sido. Por um momento penso em agir contra o homem da meia-noite, retomando nossa guerra eterna, mas vejo que agora ele é mais forte do que eu, principalmente por estar com o garotinho. Agora ele está completo, enquanto eu não tenho mais pelo que lutar. Estou tão cansado. Não há mais o que eu fazer nesse reino ou qualquer outro lugar. Agora eu me sinto preso, enquanto o homem da meia-noite está livre, mais vivo do que nunca. E eu só quero o brilho da minha estrela. Mas no último instante de consciência, quando fecho os olhos antes de finalmente descansar, enxergo a rosa. Ela é a mais vermelha da plantação, o molde de todas as outras. Mas é a única que eu não posso tocar. Me vejo subir, leve como um pluma. Estou chegando tão alto que me sinto mais perto do que nunca da minha estrela. Não sei como, mas sinto uma estranha convicção que verei ela outra vez, nessa vida ou na próxima. Então eu desapareço com um sorriso no rosto.
"Estou chegando, meu amor. Estou chegando."
"Estou chegando, meu amor. Estou chegando."
quinta-feira, 26 de maio de 2011
Separação
Voltou-se e mirou-a como se fosse pela última vez, como quem repete um gesto imemorialmente irremediável. No íntimo, preferia não tê-lo feito; mas ao chegar à porta sentiu que nada poderia evitar a reincidência daquela cena tantas vezes contada na história do amor, que é história do mundo. Ela o olhava com um olhar intenso onde existia uma incompreensão e um anelo, como a pedir-lhe, ao mesmo tempo, que não fosse e que não deixasse de ir, por isso que era tudo impossível entre eles.
Viu-a assim por um lapso, em sua beleza morena, real mas já se distanciando na penumbra ambiente que era para ele como a luz da memória. Quis emprestar tom natural ao olhar que lhe dava, mas em vão, pois sentia todo o seu ser evaporar-se em direção a ela. Mais tarde lembrar-se-ia não recordar nenhuma cor naquele instante de separação, apesar da lâmpada rosa que sabia estar acesa. Lembrar-se-ia haver-se dito que a ausência de cores é completa em todos os instantes de separação.
Seus olhares fulguraram por um instante um contra o outro, depois se acariciaram ternamente e, finalmente, se disseram que não havia nada a fazer. Disse-lhe adeus com doçura, virou-se e cerrou, de golpe, a porta sobre si mesmo numa tentativa de secionar aqueles das mundos que eram ele e ela. Mas o brusco movimento de fechar prendera-lhe entre as folhas de madeira o espesso tecido da vida, e ele ficou retido, sem se poder mover do lugar, sentindo o pranto formar-se multo longe em seu íntimo e subir em busca de espaço, como um rio que nasce.
Fechou os olhos, tentando adiantar-se à agonia do momento, mas o fato de sabê-la ali ao lado, e dele separada por imperativos categóricos de suas vidas, não lhe dava forças para desprender-se dela.
Sabia que era aquela a sua amada, por quem esperara desde sempre e que por muitos anos buscara em cada mulher, na mais terrível e dolorosa busca. Sabia, também, que o primeiro passo que desse colocaria em movimento sua máquina de viver e ele teria, mesmo como um autômato, de sair, andar, fazer coisas, distanciar-se dela cada vez mais, cada vez mais. E no entanto ali estava, a poucos passos, sua forma feminina que não era nenhuma outra forma feminina, mas a dela, a mulher amada, aquela que ele abençoara com os seus beijos e agasalhara nos instantes do amor de seus corpos. Tentou imaginá-la em sua dolorosa mudez, já envolta em seu espaço próprio, perdida em suas cogitações próprias - um ser desligado dele pelo limite existente entre todas as coisas criadas.
De súbito, sentindo que ia explodir em lágrimas, correu para a rua e pôs-se a andar sem saber para onde…
Vinícius de Moraes
Viu-a assim por um lapso, em sua beleza morena, real mas já se distanciando na penumbra ambiente que era para ele como a luz da memória. Quis emprestar tom natural ao olhar que lhe dava, mas em vão, pois sentia todo o seu ser evaporar-se em direção a ela. Mais tarde lembrar-se-ia não recordar nenhuma cor naquele instante de separação, apesar da lâmpada rosa que sabia estar acesa. Lembrar-se-ia haver-se dito que a ausência de cores é completa em todos os instantes de separação.
Seus olhares fulguraram por um instante um contra o outro, depois se acariciaram ternamente e, finalmente, se disseram que não havia nada a fazer. Disse-lhe adeus com doçura, virou-se e cerrou, de golpe, a porta sobre si mesmo numa tentativa de secionar aqueles das mundos que eram ele e ela. Mas o brusco movimento de fechar prendera-lhe entre as folhas de madeira o espesso tecido da vida, e ele ficou retido, sem se poder mover do lugar, sentindo o pranto formar-se multo longe em seu íntimo e subir em busca de espaço, como um rio que nasce.
Fechou os olhos, tentando adiantar-se à agonia do momento, mas o fato de sabê-la ali ao lado, e dele separada por imperativos categóricos de suas vidas, não lhe dava forças para desprender-se dela.
Sabia que era aquela a sua amada, por quem esperara desde sempre e que por muitos anos buscara em cada mulher, na mais terrível e dolorosa busca. Sabia, também, que o primeiro passo que desse colocaria em movimento sua máquina de viver e ele teria, mesmo como um autômato, de sair, andar, fazer coisas, distanciar-se dela cada vez mais, cada vez mais. E no entanto ali estava, a poucos passos, sua forma feminina que não era nenhuma outra forma feminina, mas a dela, a mulher amada, aquela que ele abençoara com os seus beijos e agasalhara nos instantes do amor de seus corpos. Tentou imaginá-la em sua dolorosa mudez, já envolta em seu espaço próprio, perdida em suas cogitações próprias - um ser desligado dele pelo limite existente entre todas as coisas criadas.
De súbito, sentindo que ia explodir em lágrimas, correu para a rua e pôs-se a andar sem saber para onde…
Vinícius de Moraes
quarta-feira, 18 de maio de 2011
O último adeus
Enquanto o homem da meia-noite aguarda diante da encruzilhada, eu me preparo para a batalha final, quando preciso me despedir da estrela. Nada mais justo do que tudo acabar onde começou. Por um bom tempo ela ofereceu seu brilho para mim, iluminando meu caminho, todas minhas ações. Ela não podia dar todo seu brilho, mas eu queria mais e mais, tamanho é o meu vazio. Peguei tudo o que podia e exauri seu brilho até que ele não era mais suficiente. Agora eu lembro do rosto dela, sem vida na minha frente, sem nada mais a oferecer. Eu estava vendo ela pela primeira vez em um bom tempo, então tentei esconder o que tinha visto, mas como sempre ela enxergou por dentro da minha armadura, assim como eu consigo ver através da armadura dela. Vejo agora que o que eu vi foi sua queda, caindo por minha causa, e eu não consegui suportar a culpa, por isso mandei ela embora. A culpa e a descoberta de que ela não brilharia mais. Ela estava diante de mim, como esteve tantas outras vezes, mas dentro da armadura não havia mais nada. Ela se tornou um casco vazio e a lembrança do seu brilho tornou insuportável aceitá-la daquela forma. Então comecei a afastar ela de mim de todas as maneiras, ignorando seus apelos, até partir seu coração, sabendo que ela jamais me perdoaria. E quando tentei chamar ela de volta já era tarde demais. Meu único consolo é que longe de mim ela pode brilhar de novo, porque eu não vou estar por perto para roubar o brilho, exigindo toda sua atenção. Dei a ela meu último adeus e fui me juntar ao homem da meia-noite. Eu conhecia seu reino de longe, mas nunca havia entrado nele, tampouco me imaginava no papel de vilão. Era por mim que ele chamava, aquele que o aprisionou tanto tempo atrás, finalmente desmascarado diante dele, caído aos seus pés e implorando por perdão. Mas logo o pedido passa a ser por punição, pelo que fiz a ele e a estrela, qualquer coisa para aplacar minha culpa. Mas a única coisa coisa que ele me oferece é a rosa mais vermelha que eu já vi. Eu fico em pé e pego a rosa com as duas mãos, maravilhado, então vejo toda uma plantação de rosas ainda miúdas, trazendo um pouco de cor àquele mundo tão negro. Muito pouco para um reino, mas melhor do que nada. Dou um beijo na rosa, aquele que nunca pude dar na estrela, e respeitosamente coloco ela num altar. Agora tenho uma cabana no reino despedaçado e a única coisa dentro dele é a rosa no altar. Do lado de fora está o homem da meia-noite, cuidando das rosas miúdas, finalmente achando uma razão para existir. O garotinho observa a estrada e faz companhia aos fantasmas. Quanto a mim, passo todas as noites observando o céu, procurando minha estrela. Mas toda noite vejo um céu negro e sem vida. Toda noite dou meu último adeus.
"Adeus, meu amor. Desculpa."
"Adeus, meu amor. Desculpa."
quarta-feira, 13 de abril de 2011
O fim
Ele está parado em pé, lá na terra de ninguém, o homem da meia-noite, rodeado por fantasmas. A terra suja irrita seus pés nus, porque ele não trouxe nada consigo. Não, ele não. Não o homem da meia-noite, aquele que se ergue quando não há mais nada entre uma pessoa e o abismo, tendo apenas os punhos como armas, nada além do que ele precisa. O homem da meia-noite pega um punhado de terra com a mão e a deixa escapar entre os dedos. Então tudo volta, a razão de ele estar ali, que tanto tem a ver com seu nascimento. Ele lembra do calabouço, do sorriso do outro, tão vil. Mas logo veio a queda, o abismo e o labirinto. Então foi coroado rei, sem ter onde reinar. O rei das ruínas, todos se ajoelhem perante o rei! Mas seus súditos são todos fantasmas, criados por ele mesmo em sua mente doentia. O homem da meia-noite não tem virtudes, apenas desejos, fantasias que jamais verão a luz do dia, porque ele só sabe ir em frente. Não há nada dentro dele, naquela camada mais escura, apenas perseverança. Tudo pela missão. Mas sem sempre foi assim. Ele costumava ter uma alma, que agora se fragmentou em diversas partes, espalhadas pelos quatro cantos do reino pedido. Era essa a barganha, fuga em troca de dor, e não havia outra escolha. Não para o homem da meia-noite, tão escondido lá fundo, gritando para ver a luz do dia. Aquela luz que queima, seu toque causando arrepios, tão fria. Tão quente. O homem da meia-noite leva as mãos aos lábios, tentando imaginar o gosto do morango, tão vermelho e tentador. Essa é a cor. Vermelho. Mas ali, nas terras devastadas, não existe cor. Não existe vida. Só existe a estrada e dois caminhos. Um leva para frente, escuro e cheio de desafios, sempre trovejando. O outro é inconstante, hora um vale cheio de vida e hora um campo infértil como todo o resto, uma eterna promessa de algo melhor. Mas ambos são armadilhas. Pelo menos é o que diz a voz que vem de cima, um raio de luz que por um instante afasta os fantasmas. A voz convida o homem da meia-noite a permanecer ali e tentar plantar naquele solo infértil, plantar até nascer alguma coisa, porque essa é a única maneira. Mas o homem da meia-noite lembra do outro, da barganha que trouxe sua liberdade, e da missão que ele jurou cumprir. Não por honra, mas por algo muito mais assustador, que só pode fazer sentido para quem acaba de nascer. Porque ainda não há o que ser visto, não no homem da meia-noite, desprovido de alma. Assim tem início a busca, a demanda pela alma, e a voz começa com suas lições, explicando como expandir a consciência para todos os lugares do reino, sem sequer dar um passo. Logo o homem da meia-noite está em uma caverna, sem saber como foi parar lá, e bem no fundo ele acha um garotinho meio soterrado por pedras. Eles se olham por um breve momento, dois irmãos separados no nascimento, o garotinho ainda vivo apesar de estar sozinho. Com um gesto o homem da meia-noite joga as pedras para longe, descobrindo seus poderes naquele mundo, então eles correm um na direção do outro e se tornam um só mais uma vez. O único abraço que poderia dar consolo aos dois. Assim o homem da meia-noite se torna mais velho, porém ao mesmo tempo mais novo, uma nova e inexplicável criatura naquele mundo tão solitário. De fato, tudo isso já aconteceu, sim, ele lembra agora que voltou ao terreno sem vida, mas agora há uma rosa vermelha em suas mãos, quando antes só havia terra. Uma rosa tão frágil e delicada, indecisa entre desvanecer ou brotar, entre tocar e ser tocada. Por um instante ela parece que vai brotar e o homem da meia-noite observa a coisa acontecer, esperando uma instrução da voz, quem sabe um novo poder que lhe permita preservar a rosa, manter ela intacta até o campo estar fértil. Porém, a rosa começa a tremer, intoxicada pelo ar morto e parado, e então se desfaz nela mesma, virando terra outra vez. Tudo está morto de novo e o homem da meia-noite não tem idéia do que fazer com a rosa quando ela surgir outra vez. Porque ele não tem criatividade, apenas objetivos, sem nenhum método para atingir eles além de seguir em frente. De certa forma, esse é o próprio objetivo, um destino cruel. Mas ele não está sozinho. Agora ele tem o garotinho bem protegido dentro dele, mais seguro do que jamais esteve, a única companhia que os dois precisam. Talvez juntos eles possam encontrar os outros, onde quer que eles estejam, quem quer que eles sejam. Mas o homem da meia-noite só quer saber de um deles, aquele que o aprisionou, porque a rosa o fez lembrar de alguém, uma garotinha de vermelho que certa vez lhe fez um convite. Ela é a principal barganha do outro, por isso está sempre com ele, onde quer que ele esteja. Provavelmente além da Estrada do Trovão. Se dependesse dele, o homem da meia-noite pegaria aquela estrada agora, mas a voz diz o contrário. "Não siga com as pernas um caminho que se pode correr com a mente", diz ela. "E não esqueça dos outros!", completa o garotinho. O homem da meia-noite estaca. Ninguém fala mais nada, os fantasmas silenciam, as vozes se calam. Então ele acha a própria voz: "Então é isso. Aqui é o fim do caminho, onde eu faço minha última batalha, num campo de morte. Aqui é o fim e daqui nunca vou sair. Que ele venha, porque cansei de correr atrás. Que ele venha se quiser me pegar. Então vamos lutar pela última vez". Nada. Nenhuma resposta a não ser um ruído sibilante no ar, quase uma risada, embora possa ser só uma impressão. Os fantasmas se afastam, formando uma roda. É a batalha final, quando aquele mundo deixa de existir. De repente um trovão corta o silêncio e começa a chover. O palco está armado. Não há mais volta.
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