quinta-feira, 26 de maio de 2011

Separação

Voltou-se e mirou-a como se fosse pela última vez, como quem repete um gesto imemorialmente irremediável. No íntimo, preferia não tê-lo feito; mas ao chegar à porta sentiu que nada poderia evitar a reincidência daquela cena tantas vezes contada na história do amor, que é história do mundo. Ela o olhava com um olhar intenso onde existia uma incompreensão e um anelo, como a pedir-lhe, ao mesmo tempo, que não fosse e que não deixasse de ir, por isso que era tudo impossível entre eles.
Viu-a assim por um lapso, em sua beleza morena, real mas já se distanciando na penumbra ambiente que era para ele como a luz da memória. Quis emprestar tom natural ao olhar que lhe dava, mas em vão, pois sentia todo o seu ser evaporar-se em direção a ela. Mais tarde lembrar-se-ia não recordar nenhuma cor naquele instante de separação, apesar da lâmpada rosa que sabia estar acesa. Lembrar-se-ia haver-se dito que a ausência de cores é completa em todos os instantes de separação.
Seus olhares fulguraram por um instante um contra o outro, depois se acariciaram ternamente e, finalmente, se disseram que não havia nada a fazer. Disse-lhe adeus com doçura, virou-se e cerrou, de golpe, a porta sobre si mesmo numa tentativa de secionar aqueles das mundos que eram ele e ela. Mas o brusco movimento de fechar prendera-lhe entre as folhas de madeira o espesso tecido da vida, e ele ficou retido, sem se poder mover do lugar, sentindo o pranto formar-se multo longe em seu íntimo e subir em busca de espaço, como um rio que nasce.
Fechou os olhos, tentando adiantar-se à agonia do momento, mas o fato de sabê-la ali ao lado, e dele separada por imperativos categóricos de suas vidas, não lhe dava forças para desprender-se dela.
Sabia que era aquela a sua amada, por quem esperara desde sempre e que por muitos anos buscara em cada mulher, na mais terrível e dolorosa busca. Sabia, também, que o primeiro passo que desse colocaria em movimento sua máquina de viver e ele teria, mesmo como um autômato, de sair, andar, fazer coisas, distanciar-se dela cada vez mais, cada vez mais. E no entanto ali estava, a poucos passos, sua forma feminina que não era nenhuma outra forma feminina, mas a dela, a mulher amada, aquela que ele abençoara com os seus beijos e agasalhara nos instantes do amor de seus corpos. Tentou imaginá-la em sua dolorosa mudez, já envolta em seu espaço próprio, perdida em suas cogitações próprias - um ser desligado dele pelo limite existente entre todas as coisas criadas.
De súbito, sentindo que ia explodir em lágrimas, correu para a rua e pôs-se a andar sem saber para onde…

Vinícius de Moraes

quarta-feira, 18 de maio de 2011

O último adeus

Enquanto o homem da meia-noite aguarda diante da encruzilhada, eu me preparo para a batalha final, quando preciso me despedir da estrela. Nada mais justo do que tudo acabar onde começou. Por um bom tempo ela ofereceu seu brilho para mim, iluminando meu caminho, todas minhas ações. Ela não podia dar todo seu brilho, mas eu queria mais e mais, tamanho é o meu vazio. Peguei tudo o que podia e exauri seu brilho até que ele não era mais suficiente. Agora eu lembro do rosto dela, sem vida na minha frente, sem nada mais a oferecer. Eu estava vendo ela pela primeira vez em um bom tempo, então tentei esconder o que tinha visto, mas como sempre ela enxergou por dentro da minha armadura, assim como eu consigo ver através da armadura dela. Vejo agora que o que eu vi foi sua queda, caindo por minha causa, e eu não consegui suportar a culpa, por isso mandei ela embora. A culpa e a descoberta de que ela não brilharia mais. Ela estava diante de mim, como esteve tantas outras vezes, mas dentro da armadura não havia mais nada. Ela se tornou um casco vazio e a lembrança do seu brilho tornou insuportável aceitá-la daquela forma. Então comecei a afastar ela de mim de todas as maneiras, ignorando seus apelos, até partir seu coração, sabendo que ela jamais me perdoaria. E quando tentei chamar ela de volta já era tarde demais. Meu único consolo é que longe de mim ela pode brilhar de novo, porque eu não vou estar por perto para roubar o brilho, exigindo toda sua atenção. Dei a ela meu último adeus e fui me juntar ao homem da meia-noite. Eu conhecia seu reino de longe, mas nunca havia entrado nele, tampouco me imaginava no papel de vilão. Era por mim que ele chamava, aquele que o aprisionou tanto tempo atrás, finalmente desmascarado diante dele, caído aos seus pés e implorando por perdão. Mas logo o pedido passa a ser por punição, pelo que fiz a ele e a estrela, qualquer coisa para aplacar minha culpa. Mas a única coisa coisa que ele me oferece é a rosa mais vermelha que eu já vi. Eu fico em pé e pego a rosa com as duas mãos, maravilhado, então vejo toda uma plantação de rosas ainda miúdas, trazendo um pouco de cor àquele mundo tão negro. Muito pouco para um reino, mas melhor do que nada. Dou um beijo na rosa, aquele que nunca pude dar na estrela, e respeitosamente coloco ela num altar. Agora tenho uma cabana no reino despedaçado e a única coisa dentro dele é a rosa no altar. Do lado de fora está o homem da meia-noite, cuidando das rosas miúdas, finalmente achando uma razão para existir. O garotinho observa a estrada e faz companhia aos fantasmas. Quanto a mim, passo todas as noites observando o céu, procurando minha estrela. Mas toda noite vejo um céu negro e sem vida. Toda noite dou meu último adeus.

"Adeus, meu amor. Desculpa."